sábado, 2 de fevereiro de 2008


HELOISA AUSIER

Melhor pecados, que trajédias!


O som do piano ficava cada vez mais perto, como mais perto ficava o rosto dela, o cheiro doce e a voz sempre tão calada. Os dedos saltitavam e as teclas obedeciam. Desobedecia minhas decisões e mesmo merecendo desconfiança, dizia sim e depois não. Mas não havia segredo que interferisse em meus sonhos, simplesmente não podia fazer promessas e não cumpri-las. Mas ela sabia que a amava... Amava o que poderia ter sido de nós! Naquela época, mas não para sempre... Seus toques no piano tinham a delicadeza de quem toca uma boca. O som saltitante enchia cada canto da sala.


Em quantas tragédias o amor poderia se transformar. Preferia o pecado de desejá-la ali com os toques limpos daqueles dedos treinados e delicados, a me calar. Se ela ao menos tivesse um tempo disponível, eu poderia amá-la. De qualquer jeito... Amá-la como amiga. Eu não me importava se ela não se importasse, mas não havia nada de errado comigo. Eu apenas vivia numa fantasia entre a insanidade e a insegurança. A cada toque sutil, um suspiro. A respiração suspensa a cada olhar. E o vazio do desejo a me sufocar. Não sentia vergonha, não ia me desculpar, só precisava de um coração onde pudesse me encostar e uma alma nova. Ela podia ser um anjo ou uma estrela, podia ser uma gota de chuva ou uma tecla daquele piano numa mistura infantil. Esperanças sendo destruídas a cada nota. Morrer de amor me cansava, mas eu não chorava porque ainda havia a criança em mim. Já tinha vivido para o futuro, mas só o presente podia dar a ela. Cada dia me parecia mais perto e mais longe. Quase não me importavam seus gestos, só o toque nas teclas. Mas ela sabia que a amava... Amava o que poderia ter sido de nós! Naquela época, mas não para sempre... Eu já tinha esperado tanto pelas estrelas, pelo desejo nos seus olhos iluminados. Aquelas teclas que não paravam... Aquelas notas que não calavam... Será que ela gostaria de tentar algo novo? Será que minhas perguntas poderiam machucá-la? Por que ela não tocava seus dedos em mim como se minha boca fosse esse piano? Estava na hora de nos darmos uma chance. Como num sonho molhado ela escorria por entre minhas mãos para o piano e as notas saiam secas, secas demais!

Apenas esse dia, ela tinha que esquecer nossos pecados, pois eles não podiam virar tragédias. Eu seria uma espécie de voz sublime e ela minha testemunha, leve e plena de liberdade. Quem sabe ela poderia pensar em mim quando estivesse na cama. Quando a luz estivesse apagada e seu coração batesse rápido e seus dedos tocassem sua pele e não mais o piano, ela poderia pensar em mim. E as teclas como que sem perceber meu calor seguiam a desafiar as notas saltitantes num “jeux des vagues” sem fim. Não era exatamente assim que ela me queria ter, onde ela me queria?

Entre a insanidade e a insegurança eu seguia amando, mas não para sempre. Ela sabia que a amava... Me dava um pouco de atenção maliciosa a cada toque. Não tinha escolhido, mas ia tocar com sinceridade, sem promessas, sem lágrimas. Que linda caricatura de intimidade tínhamos naquela época, mas nas sombras dos seus lençóis não eram para mim seus pensamentos. Seguíamos tendo apenas algumas músicas prediletas em comum e aquele sussurro do piano enchendo cada canto da sala. Há quanto tempo eu imaginava que por trás daquele brilho no olhar havia uma garota apaixonada. Quanta expectativa havia nela por toda essa atenção? Corações jovens batem rápido e a espera de um beijo entre cada toque, entre cada olhar, apenas tirava o pouco do fôlego que ainda me restava. Sim, eu preferia os pecados ao invés das tragédias. E que tragédias podiam nos esperar se ela me olhasse com olhos de desejo? Que pecados podíamos abrir mão sem nos desejarmos?

Os sons a cada canto da sala ficavam mais distantes. Não havia mais sorrisos, nem tesão. Os toques nas teclas eram como corações batendo rápido sem saber para onde ir. Já não sentia seu cheiro nem seu calor. Não seria em mim que ela pensaria quando estivesse na cama. Poderia tê-la amado de qualquer jeito. Poderia tê-la amado como amiga. Apenas amava o que poderia ter sido de nós! O resto era apenas retalhos e “nonsense”.





4 comentários:

Anônimo disse...

Conto denso, minucioso, sutil...nada nos escapava e tudo nos remete a nossas próprias expectativas que jamais foram cumpridas. Quem dera tivesse essa leveza de renda delicada para tratar o texto como um sinfonia.
Mas...cada escritor cumpre um destino. O seu é o de ter a rara qualidade de refinar palavrs e sentimentos, até tudo ficar tão belo como nesse conto com que nos presenteia.

André Ferrer disse...

Há um jogo de contrastes neste texto que me apaixonou: "Como num sonho molhado ela escorria por entre minhas mãos para o piano e as notas saiam secas, secas demais!" Molhado-seco, silêncio-ruido, preto-branco... Realmente são os tijolos "dialéticos" que levantaram o universo! E como ficam belos numa criação humana, sombra da criação divina. O amor e o desamor, como a solidão e o "ato", ficam bem assim numa narrativa.

Ana Lidia Pimentel disse...

Este conto revela o bom gosto com que a autora trata assuntos ainda polêmicos. O requinte no uso das palavras transporta o leitor para a cena, que vai mais e mais se tornando envolvente e aguçando a curiosidade que nos levará em ótimo ritmo até o final.
Parabéns ao Blog por ter trazido esta nova escritora.
Agradecimentos e parabéns à autora que nos proporcionou momentos de boa leitura.

Virgínia disse...

Helô querida, não sei se fiquei mais emocionada com seu sorriso na foto, que parece tão aqui ao meu lado, ou com a qualidade poética, amorosa, do seu texto! Um prazer mesmo, de ver e de ler. E parabéns ao site, que é ótimo!

Virgínia